sábado, 5 de março de 2011

A casa da mãe




Tem coisas na vida, que por mais simples que sejam, nem de longe se comparam à outras conhecidas. São assim como nossas digitais, são únicas.

A casa da mãe é assim. O lugar certo para você voltar quando sua saída para o mundo não der em nada. Uns dizem que depois que se sai de lá não dá mais para voltar. Pura mentira!

A casa da mãe é o único lugar onde tudo é de todo mundo, menos dela. Você vai embora levando suas roupas e objetos pessoais, mas deixa sempre um chinelo velho de borracha, uma escova de dente usada, o ursinho de quando era criança; alguns discos que não lhe interessam, mas ainda são seus, e um monte de tranqueiras. É meio que um depósito onde suas coisas ficam guardadas para alguma precisão.

Lá, a mãe não é dona de nada. Quando o filho mais velho chega com a família para o almoço de domingo e resolve escutar aquele Ray Charles, a mãe logo diz:

- é melhor não mexer! Você já sabe que seu irmão não gosta.

E se o neto descobre aquele jogo de panelinhas no fundo do armário, ela replica:

- larga isso menino! São coisas da sua tia que ela guardou para dar de presente quando nascer a primeira filha.

Na casa da mãe, você usa a toalha de banho dela e volta com a sua seca dentro da mala. Você chega na hora do almoço, sem avisar, e sempre tem uma sobrinha pra você. Você leva pra casa o resto do bolo que ela reservou para o café da tarde com a desculpa de que já está rolando há muito tempo na geladeira.

Quando sua irmã briga com o marido, ela diz:

- eu avisei que isso não ia dar certo...e arremata:
- não sei o que você está fazendo lá que ainda que não veio embora!

Na casa da mãe tem sempre um potinho com uns trocadinhos que ela guarda para comprar o pão, e você os pega para facilitar o troco de sua passagem de ônibus.

O Natal, e também a Páscoa, são sempre obrigatórios passar na casa da mãe. Não que seja só por ela, mas porque na casa da mãe você encontra a ceia pronta e ainda tem a cara de pau de sair sem arrumar a bagunça.

Você também manda na casa da mãe. Escolhe a cor do sofá que ela quer reformar, dá esporro na empregada, determina o que fazer pro almoço, implica com o vizinho dela e sempre carrega alguma coisa que está sobrando por lá que você diz estar precisando muito.

Na casa da mãe, você lê o jornal e deixa espalhado pelo chão. Não precisa apagar a luz do banheiro; troca o canal da TV assim que chega, fala interurbano e não paga a conta e, ainda por cima, quando vai embora, sempre pede um dinheiro emprestado que nunca devolve. Afinal, dinheiro de mãe não se paga, é de coração.

Depois, na verdade, você nunca quis mudar da casa da mãe e ela, maliciosamente, também nunca quis que você fosse embora.

Mãe sempre tem suas predileções por algum filho, apesar de dizer que amor de mãe é igual pra todos. A verdade, que pra ela, você pode ser ex-tudo: ex-genro, ex-marido, ex-namorado, mas nunca vai ser ex-filho.

A Casa da mãe é uma coisa assim: patrimônio coletivo. Tanto que quando você se refere a ela, sempre diz:
- Lá em casa...

Verdadeiramente, a mãe é a única mulher que você consegue conviver até que a morte os separe e quando isso acontece, mesmo assim, você briga para ficar com a casa da mãe.

Niterói/RJ, 30/11/2003 Texto sem revisão

Adoro andar de ônibus




Adoro andar de ônibus. Nada se compara a liberdade de estar em vários lugares, ter várias óticas da cidade. São momentos especiais. Flashes do cotidiano fotografados por meus olhos, tal e qual uma história em quadrinhos, onde um único movimento necessita de vários riscos.

A vida se renova sempre que entro no ônibus, ainda que no mesmo trajeto. A mulher da blusa azul não estará mais naquela esquina. O homem que carregava a pasta preta também não. Mas pelo menos eu sei que eles existem. Que suas histórias se cruzam a minha, mesmo que em outros trajetos ou talvez no mesmo, ainda que a blusa seja branca.

Adoro andar de ônibus, sempre descubro coisas novas no caminho.
O mundo e o movimento da vida são tão cheio de possibilidades.

Da janela do ônibus faço o enquadramento da minha câmera especial, os meus olhos. Fotografo várias cenas, dirijo vários roteiros, escrevo muitos livros. Vivo intensamente da janela do ônibus.
Participo da vida alheia sem consentimento. Viajo a lugares além da dimensão real. Coloco ordem ao caos da cidade.

Faço amigos íntimos no enquadramento das janelas dos edifícios. Vou indo perto e longe da vida e consigo tocar as vidas que trafegam sem ter que pedir permissão.

Adoro andar de ônibus...

Florianópolis/2007 - Sem revisão

Carta para Stella



Sinto saudade amiga minha, a mais cara de todas. O abraço mais íntimo e generoso que conheci.
Sinto saudade amiga minha, das conversas longas, sem tempo e sem hora, sem ponto final.

Sinto saudade amiga minha, dos afagos nos pés, das massagens nas têmporas, quando das dores de cabeça lancinantes.

Sinto saudade amiga minha, dos papos intermináveis nas noites de dor, das chegadas repentinas ao menor sinal de sofrimento.

Sinto saudade amiga minha, dos carinhos transformados em lanches preciosamente preparados; em remédios ministrados madrugada afora; das mãos passadas nos cabelos, sussurrando estar chegada à hora da próxima dose.

Sinto saudade amiga minha, da cama cedida a minha angústia. Dos nossos risos meros, dos momentos belos de nossa convivência.

Sinto saudade amiga minha, de sua mão única a acenar o adeus na dolorosa partida.

Para você amiga minha, escrevo e pronto, não preciso de ponto para dizer que sei, que foi de você que levei o melhor que eu ainda tinha.

Mas mesmo assim, sinto tanta, tanta saudade, amiga minha!

Niterói - 2000 Sem revisão

A Busca



Hoje sai por aí como se fosse mais um dia como outro qualquer. Sai meio que me procurando. Fui até a esquina e não estava lá. Resolvi então ir mais além: dei uma volta no quarteirão, mas também não estava lá.

Então pensei: e se eu for mais longe? Pegar um ônibus, quem sabe? Andei até o ponto mais próximo e quando entrei. Resolvi sentar-me à janela para ir me procurando. Avenidas, praças, esquinas, a ponte por sobre o livre mar que se espraia por todos os lados da Ilha. Reparei: não estava lá!

Parei no centro velho. Fitei o casario, o vai e vem das pessoas com pressa, sempre a pressa! Vento sul balançava as saias, carregava os cabelos, encharcava os corpos frenéticos. Esperei em vão, também não estava lá.

Perguntei-me: será que me espero? Mas e se me demorar muito? Talvez não dê tempo de me encontrar. Quem sabe devesse voltar?

Caminhei, fucei todos os cantos. Espiei por trás das árvores e nada. Muito tempo depois, já em casa, lá estava, que surpresa!

Ao toque de cada letra me senti. Pude ver a minha fisionomia, como se num espelho estivesse. O branco do papel virtual me refletia. Aqui estou em cada entrelinha.

Floripa/2007 - Sem revisão

Éramos tão jovens...



Éramos tão jovens! Tudo era possível, a vida estava só começando. Tantas descobertas, tanto ainda por se revelar: a festa, os amigos, as viagens, os pequenos delitos.
Éramos inocentemente jovens.

Acreditávamos no amor eterno, no amigo pra sempre, na vida infinita, na juventude atemporal.
Ouviamos Vandré enchendo o peito de ar e seguíamos enfrente sem contabilizar os anos.
O minuto era eterno. O tempo parava para ver passar nossa juventude com fúria, beleza e ingenuidade.

A trilha sonora do momento era o nosso combustível.
Embalados pela melodia éramos atores do nosso próprio roteiro imaginário.

Haviam os planos, os sonhos, as conquistas sem metas estabelecidas, o que, aliás, não contabilizávamos era o tempo. Corríamos pela vida como no jardim de nossa casa, tão conhecido era o terreno.

Éramos tão jovens e o beijo era o mensageiro da paixão que vinha embrulhado em abraços, amassos no muro da esquina. Tudo resplandecia. A felicidade era nossa droga predileta, o nosso vício inconfessável.

Sempre um novo motivo para comemorar. Um sentimento novo para desvendar. Um novo amigo, um novo lugar, um outro pôr do sol para apreciar. Éramos tão jovens que a juventude se perpetuava a cada nascer do sol.

Éramos os donos do melhor amigo, da melhor festa, da melhor história, da maior paixão. A intensidade do nosso viver era tanta e tão pouca que nem me lembro mais o tempo que percorri.

Ao acordar hoje, não precisei me olhar no espelho para me sentir, aos cinquenta e dois anos, ouvindo a mesma trilha sonora sem me dar conta se estava no presente, no futuro, ou ainda adormecida no passado. Apenas percebi que éramos tão jovens!

São Paulo - Ago/2007 Sem revisão

Ponto Final



Dei a você o melhor de mim: meu amor, amizade e lealdade.
Com você reparti os melhores anos, o carinho e o sonho.
Fiz de você meu companheiro certo, amigo predileto; meu parceiro, meu herói, meu doce guerreiro.
Você foi embora assim: sem amizade, sem lealdade, sem amor por mim.
Apenas me legou um robe e um pulôver de tricô; minha vida você levou.
Parti sem palavras, sem um abraço, sem um muito obrigado.
Sem ouvir um nada, voltei pela mesma estrada que juntou você a mim.

Petrópolis/RJ - 2000 -Texto sem revisão

Retrato da Alma



Andando ia sozinha.
A alma inquieta, dispersa e desvairada.
Solidão que se avizinha ia comigo como companhia.

Solidão da alma que não se acalma,
alarga o peito de coração estreito.
Confunde a mente já demente,
invade o resto que ficou desfeito.

Barulho urbano, intocável eco distorcido.
Som conhecido do coração partido,
da alma calada que aos poucos se apaga,
deixando o nada sem sentimento, sem choro, sem lamento.

Feliz, palavra apenas de dicionário e de poema,
mas nunca habitada pela alma pequena,
que sente pena do corpo lento,
que o movimento se faz pelo vento.

Vagueia ventania.
Repisa o sopro da vida.
Chuta o tempo e aos pontapés quebra o silêncio.
Assim termina mais um dia.

Niterói/2003 - Sem revisão

Desancorado



Nada mais ficou dos traços e dos planos, apenas enganos.
Abafa o gemido que insiste no peito.
Traz consigo o medo como segredo.
Enche o destino obscuro. Tateia como um cego que na bengala traça o caminho.

Cada um ao seu lado, rumos desencontrados.
Desejo de ser o outro lado do dia que não termina.
Vai longe à história construída.
Alma agora dividida, antes gêmea , hoje abortada.

Falta o seu cheiro.
No desespero, afunda a dor no travesseiro.

Pernas entrelaçadas, âncoras da madrugada.
Resta o gelo da cama de solteiro que abriga o seu corpo inteiro.
Intimida o medo do vazio,
Bate a porta e sai escondido.

Porto Velho/RO - 2000

Cataclismo



De repente, se fez entre a gente a distância do oceano.
De repente, se fez entre a gente a linha imaginária que corta a terra.
De repente, se fez entre a gente a muralha da China, repartindo nossas vidas.

De repente, se fez entre a gente os duzentos anos do sono de Herculano.
Instalou-se o silêncio, soterando nossos planos.
De repente, se fez entre a gente dois continentes.
Nada mais se distinguia.

De repente, se fez entre a gente dois rumos tão diferentes.
Vias paralelas que transversal alguma jamais cruzaria.
De repente, nada mais se fez entre a gente.

Porto Velho/RO - 2000

Onde eu coloco o lixo?




Não se esqueça nem por um dia:
quando o seu carro ao cruzar o farol da esquina vazia e - como numa aparição - aquele moleque gritar:
- Passa a bolsa tia!
Não se esqueça nem por um dia.

Não se esqueça nem por um dia:
de sua carteira abatida e você jaz ali, riscada da lista da vida. Pode crer, por detrás da alça de mira daquela arma vadia, estarão os filhos do Brasil dois mil que o nosso dinheiro financia.
Não se esqueça nem por um dia.

Não se esqueça nem por um dia:
da geração das palavras de Ordem, “da Liberdade antes que tardia”.
Não se esqueça nem por um dia.

É isso: dos anos setenta a dois mil, ficaram pelo meio os anos oitenta que esta geração produziu.

Pasmo em constatar que não temos mais pelo que lutar.
Caíram todas as Bandeiras.
Fecharam nossas trincheiras.
Derrubaram todos os mitos.
Transformaram a história num rito de almas abandonadas a vagar.

Cabeças desabitadas.
Mentes vazias.
Não sabem nem o nome da Tia, que dirá o significado da palavra “anarquia.”

Varreram de suas vidas a ideologia.
Enfiaram-lhes goela abaixo as marcas e patentes da massificação dormente que, pensam eles, ser a nova rebeldia.
Não se esqueça nem por um dia.

Não se esqueça nem por um dia:
que fizemos nós produzindo nos anos setenta os alicates de corte das correntes que hoje predem os corpos adolescentes a mentes tão dementes!

Cheiram a vida no pó reluzente e seus discursos eloqüentes não passam de monossílabos babados, saindo por todos os lados a toque de um baseado.
Não se esqueça nem por um dia.

Que língua é esta desta gente?
Sânscrito ou qualquer dialeto indecente?
Da materna nada se sabe.
Sinto-me só neste Continente de robóticas turbinadas e neurônios aniquilados.

Caíram todas as Bandeiras.
Fecharam nossas trincheiras.
Não há pelo que lutar.

E que saudade de Chico em sua doce melodia! “Estava à-toa na vida pra’ ver a banda passar...”

Que me perdoem Vandré, Chico e Luiz Melodia, mas nem o Estácio alivia os sentidos dos erros cometidos, pois esta não era a liberdade que eu queria.

Niterói-RJ/2003

Quanto vale amar?



Quanto vale amar?
Um conto?
Um vintém?
Lágrimas que jorram como rios corrediços que ninguém detém?

Quanto vale amar?
Planos insatisfeitos?
Carinhos requeridos nunca recebidos?

Quanto vale amar?
Doar, doar? Não sei.
Saber-se-ei?

Como no vácuo do vento sinto um vazio imenso,
apartada da vida por alguém.

Procuro na minha loucura, o mundo.
Não há mais ninguém.
Espero todos os dias por aquele dia de agosto que acreditei amar também..

Chuva de pedra cai à noite.
Sábado de sol transborda a solidão que soterra minha alma pelo desamor de alguém.

Porto Velho - 2000

Mar de outono



E o outono chegou novamente, sem chuva e sem dias muito frios. O céu está de um azul esplêndido.

O mar, um complemento da beleza azul, de poucas ondas, às vezes manso e imenso, às vezes rebelde e tão próximo. A praia vazia cabe inteira no meu olhar. Alguns poucos a brincar com as ondas, sorvendo a sua grandeza.

Sento-me à sua frente sem desviar os olhos e consigo enxergar na sua infinitude os sonhos, os desejos escondidos, a fúria da passagem dos anos que leva de mim a vida e me deixa para trás no mais íntimo dos planos.

O mar de outono é um convite ao reencontro comigo mesma. É nele que deposito as aspirações mais profundas e vislumbro os meus caminhos, Encurto as minhas distâncias, viajo nas minhas alucinações, redescubro o tempo de recontar, refazer, recriar, recompor e voltar a sonhar na próxima primavera.

Por: Alice P. Guimarães
Floripa, 24/05/2009